Rússia quer redefinir as rotas do trigo
A Rússia, maior exportador mundial de trigo, reforça sua posição de dominante no Mar Negro e busca redefinir as rotas do grão utilizado para o pão, graças a safras excepcionais e preços agressivos.
"A Rússia sozinha é responsável por 25% das exportações mundiais de trigo e tem reservas correspondentes", afirma Sébastien Abis, autor de “Géopolitique du blé” (Geopolítica do Trigo) e pesquisador do Instituto Francês de Relações Internacionais e Estratégicas (IRIS).
A guerra na Ucrânia abriu novas rotas, como as fluviais do Danúbio. Isto permitiu a Kiev continuar exportando grãos, apesar da suspensão em julho do acordo de cereais do Mar Negro, que a Turquia deseja reativar e para o qual prepara "um conjunto de propostas" em conjunto com a ONU, como anunciou na segunda-feira o presidente Recep Tayyip Erdogan, após uma reunião com o homólogo russo, Vladimir Putin.
Mas, além de outros fatores, o conflito que começou em fevereiro de 2022 reforça o domínio russo sobre o comércio mundial de trigo.
De um lado, as vias fluviais continuam "frágeis", pois são bombardeadas com frequência, recorda o economista Joseph Glauber, do Instituto Internacional de Pesquisas sobre Políticas Alimentares (IFPRI, na sigla em inglês), com sede em Washington.
E, embora o corredor marítimo "tenha permitido a saída de quase 33 milhões de toneladas de produtos agrícolas do país em um ano, o acordo não ajudou a Ucrânia a recuperar-se em termos de produção agrícola, devido à própria guerra", que devastou 25% de suas terras cultiváveis, explica.
- Reorganização agrícola -
Em 2023-24, a produção mundial de trigo deve ser menor que a safra anterior, uma consequência, parcial, dos fenômenos climáticos no Canadá e na Austrália. As estimativas de consumo superam as de produção em 20 milhões de toneladas (MT).
Neste cenário, "o mundo espera que 45 MT de trigo russo cheguem ao mercado", destaca David Laborde, diretor do Departamento de Economia da Organização da ONU para a Alimentação e a Agricultura (FAO).
O domínio russo foi estabelecido há meio século: "Há 55 anos, metade do trigo exportado no mundo era procedente dos Estados Unidos. Nos últimos 50 anos, vimos uma diversificação do mercado mundial", afirma o economista.
A hegemonia americana foi progressivamente "questionada pelas exportações do oeste da Europa - que se recuperava da Segunda Guerra Mundial -, depois por países como Argentina e Austrália e, a partir dos anos 2000, pelo surgimento do polo do Mar Negro", acrescenta.
A Rússia, importadora líquida de trigo há 25 anos, após o colapso do bloco soviético, se recuperou e assumiu a liderança da exportação mundial em 2016.
A agricultura virou o terceiro principal setor comercial do país, atrás apenas da energia e dos metais/minerais, e à frente das armas. "A Rússia rearmou sua agricultura", resume Sébastien Abis.
Com a guerra, "tudo acelerou", destaca o pesquisador. "A Rússia dos cereais 'russificou' a sua diplomacia do trigo: não estamos mais sob as regras do mercado".
Quando abandonou o acordo de grãos do Mar Negro, Putin prometeu entregas gratuitas a seis países africanos (que representam menos de 1% das exportações russas), aplicar tarifas preferenciais para o Egito - nação amiga - e manter preços baixos para conservar uma vantagem competitiva.
Moscou "desenha novos mapas, tanto estrategicamente porque não joga com as mesmas ferramentas (que os outros atores do mercado), mas também com base no fato de que a Rússia é a única que produz mais e exporta mais. O único país que competia com a Rússia em termos de tendência era a Ucrânia", destaca Abis.
- Importadores "neutros" -
Esta hegemonia tem um peso importante para países como Egito e Turquia, que são de longe os principais importadores de trigo russo.
Enquanto o primeiro importa 80% de seu trigo pelo Mar Negro, o segundo transforma o grão em farinha para reexportá-lo para o Oriente Médio, África ou Ásia, explica Laborde.
Os países mais dependentes são aqueles que consomem mais pão, como os do norte da África, além de Sri Lanka, Bangladesh ou Paquistão.
O peso da Rússia traça rotas comerciais "que não são lógicas geograficamente", afirma Abis. Um exemplo é que Marrocos e Argélia, tradicionais clientes da França, alteraram suas regras de importação para poder comprar trigo russo.
E, como indica Joseph Glauber, desde o início da guerra muitos países importadores da África permaneceram "neutros" nas instituições internacionais para não ofender a Rússia, ao mesmo tempo que defendem o acordo de grãos do Mar Negro.
O pacto é crucial para os importadores porque, ao favorecer a mobilidade do trigo, gerou a queda dos preços após a disparada do início de 2022.
Agora, um dos grandes temores dos operadores é um incidente no Mar Negro, como um bombardeio de um cargueiro com grãos e um aumento considerável dos preços dos seguros.
"Porém, isso não interessa aos russos, porque o Mar Negro deve permanecer como seu corredor exclusivo", afirma Abis.
(F.Moulin--LPdF)